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VI Congresso da ABRATES: uma viagem pelo mundo da localização

No VI Congresso da ABRATES, acabei assistindo a algumas palestras mais relacionadas ao meu mundo de trabalho: a localização. Para que você entenda um pouco melhor sobre esse ramo da tradução ou adquira novas visões sobre ele, procurei fazer pontes entre as palestras e coletar depoimentos dos colegas que consegui "segurar" comigo entre uma palestra e outra: Fabiano Cid, da Ccaps, Isabel Georg, da LocHouse Translation & DTP, Pedro Veloso, da Filigrana Traducciones, e o grande Ricardo Souza.

O mais importante dessas conversas e palestras é que não necessariamente chegamos a respostas definitivas; contudo, seria impossível ampliar meus horizontes sobre um mercado tão dinâmico sem a experiência única e singular de cada uma das pessoas com quem conversei. Ao ler essas reflexões, talvez você “viaje” conosco e se “localize” também!

A linguagem como “roupa íntima”

Em seu discurso de abertura, o jornalista Robert Lane Greene nos brindou com várias ideias importantes sobre linguagem, entre elas, o conceito de “underwear language”. Esse idioma, tão próximo de nós como uma roupa íntima, é nosso idioma nativo, nos fala direto ao coração e às emoções. Por outro lado, quando usamos um idioma estrangeiro, tendemos a pensar mais sistematicamente e com maior distanciamento. Nesse sentido, a tradução é quem faz a ponte entre um conteúdo global e um conteúdo localizado, no nosso idioma, que nos toca de forma especial. E é a “underwear language” que mais interessa à localização.

E o que é localização? Conforme definição da GALA, localização (designada também pela sigla L10n) é o processo de adaptação de um produto ou conteúdo para uma localidade ou um idioma específicos. A tradução é somente uma das etapas do processo de localização de software, atentando para as especificidades culturais e técnicas de cada localidade e fazendo com que o usuário sinta que aquele produto foi especialmente criado para ele.

Qualidade em localização

Para tratar da importância da qualidade em localização, Fabiano Cid, da Ccaps, apresentou um estudo de problemas encontrados em três anos de LQA. O processo de LQA (Linguistic Quality Assurance) é muito comum nas traduções de localização. Trata-se do controle de qualidade de amostras da tradução com base em parâmetros instituídos pela LISA (Localization Industry Standards Association). Ao final, a tradução recebe uma pontuação final, o status de aprovada ou reprovada, além de detalhes sobre os tipos de erros e a gravidade dos erros encontrados.

A empresa elaborou um modelo de LQA interno para avaliar a qualidade da tradução de seus fornecedores e ofereceu feedbacks das traduções por um período de três anos, com o objetivo de identificar onde estavam os problemas de qualidade e como melhorá-los. O que se percebeu, de forma geral, foi uma grande ocorrência de erros básicos (e inaceitáveis), como erros de digitação, além de problemas de precisão e gramática, com índices de qualidade decrescentes ao longo desse período.

 

Por que isso está ocorrendo no mercado? Prazos apertados? Pouco estudo? Ou os “erros” repetidos refletem uma linguagem contemporânea não contemplada por nossas gramáticas de trabalho do século XIX? Afinal, a tendência natural das línguas é mudar, e somos nós, profissionais de linguagem, em conjunto com a educação formal, que mantemos a estabilidade no sistema por inércia, ou seja, retardando a evolução.

Bom, não temos resposta. São muitas questões a se pensar. Mas, no mundo da escrita de profissionais cujos textos são altamente monitorados e revisados por especialistas, o diferencial do tradutor de localização, sem dúvida, é REVISAR O PRÓPRIO TRABALHO. Veja o que Fabiano Cid, diretor-executivo da Ccaps, tem a dizer sobre isso:

Acho que as pessoas estão esquecendo de que elas traduzem para o português. Não quero que ninguém decore a gramática do Celso Cunha, quero que tenham conhecimento básico do português e que saibam escrever bem. Além disso, ser cuidadoso com seu trabalho, entregar um trabalho que pelo menos tenha sido revisado e não simplesmente sair traduzindo e entregar da maneira que for. Embora os prazos estejam cada dia mais apertados e a produtividade tenha que ser cada dia maior, acho que tem que haver um cuidado maior. As pessoas estão esquecendo da necessidade de um trabalho ser revisado. Não estou falando de uma revisão exaustiva, você é um tradutor apenas e teoricamente vai ter alguém revisando seu trabalho, mas que pelo menos o trabalho seja condizente com o que você está oferecendo, e não um trabalho de um estudante de tradução que não consegue escrever bem o português.

Tradução automática como ferramenta de tradução profissional: mito ou realidade?

O setor de localização está intimamente relacionado à tecnologia da informação e, por isso, se vale também de ferramentas e avanços tecnológicos para aumentar a produtividade dos tradutores. Na palestra de Pedro Veloso, aprendemos sobre todo o histórico de surgimento e aperfeiçoamento das ferramentas de TA (tradução automática), como o Google Tradutor, e TAC (tradução assistida por computador), como processadores de textos, memórias de tradução e bases terminológicas.

Atualmente, as ferramentas de TA e TAC estão trabalhando em conjunto para favorecer a tradução profissional, numa relação de aprendizagem simultânea homem-máquina que alimenta a inteligência artificial. Em seu estudo aplicado, Pedro concluiu que a PETA (pós-edição de tradução automática) pode aumentar a produtividade do tradutor em um percentual considerável (76% a 86%), ainda que a questão do estilo seja problemática para a máquina.

E algumas perguntas ficaram em aberto: Quem é o pós-editor do futuro? A linguagem da pós-edição terminará por engessar a linguagem? O estilo será um elemento importante para a qualidade no futuro?

Leia alguns depoimentos interessantes sobre isso a seguir.

"Com certeza absoluta, o campo de machine translation e, consequentemente, de post-editing, está crescendo muito e está muito aprimorado. A gente vê essa diferença nítida em relação a um tempo atrás, talvez um ano, que é pouquíssimo tempo se você for pensar em tecnologia. Uma machine translation que era muito precária, com muitos erros, praticamente toda retrabalhada, até no Google (Tradutor), hoje está muito bem-treinada e com um corpus muito selecionado, com glossário e TM de trabalho. E como ela pega muita memória de tradução humana, acaba também ficando melhor.

Agora, acho que você deve criar um mecanismo para determinado objetivo. Por exemplo, o Google Tradutor tem um corpus enorme e nada dali pode te servir. Se você quer colocar o corpus só de determinado cliente, selecione o software e invista naquele mecanismo com um corpus retreinado o tempo todo, que vai te servir cada vez mais.

Mas isso não significa também que, por ter evoluído tanto nesse tempo, vá chegar um momento em que a TA não precise mais de edição humana. Há uma tendência na parte técnica de a TA ser melhor, porque o texto é mais certinho, mais controlado e estruturado. Mesmo assim, passam frases em que você não precisa trocar absolutamente nada e outras em que você vê que a TA não funcionou, e é preciso mexer em tudo. A maioria dos mecanismos de TA são estatísticos, então eles sempre colocam pra você o que aparece com maior frequência, e não necessariamente o que aparece com maior frequência é o que você vai usar naquele momento. Então, sempre tem que ter alguém pra olhar, e, a partir do momento que tem alguém olhando, aquilo passa a ter valor humano."

Isabel Georg, coordenadora linguística da LocHouse Translation & DTP

"Há hoje um interesse muito grande por parte das empresas em desenvolver uma massa pós-editória de volume, como houve com o crowdsourcing, porque é uma fonte de mão de obra barata que eles estão precisando hoje. Mas a pós-edição é uma função natimorta. (...) A tendência é haver cada vez menos pós-edição, porque as ferramentas vão ficar cada vez mais inteligentes. A função de pós-editor existe hoje como um intermediário para você permanecer no mercado neste momento e, numa fase adiante, você evoluir na sua relação com a máquina. Porque o grande "tchan" da ferramenta de tradução automática não é a pós-edição, é a pré: a preparação de escopos de linguagem controlada para que a ferramenta de tradução tenha o menor trabalho possível pra processar aquilo e o resultado que ela produza exija o menos de pós-edição possível. Hoje, que eu conheça, o ápice da linguagem controlada está no setor aeronáutico. (...) Então, quando a informação vier do empresário (e eu não estou pregando querelas, estou pregando cuidado), a gente deve ter em mente que a informação está vindo de alguém cujo interesse é o retorno financeiro no menor prazo possível. A gente tem que ver se isso que está vindo dele realmente é benéfico para nossa profissão, no médio e longo prazo, ou se é uma estratégia empresarial. E, na minha opinião, essa ênfase na pós-edição é empresarial. No ponto de vista de linguista, não é a melhor postura para o tradutor."

Ricardo Souza, profissional de linguagem em tempo integral desde 1985

Agora, e as implicâncias do foco na pré-edição em termos de riqueza de linguagem? Porque, no âmbito da aeronáutica, por exemplo, a riqueza de linguagem é dispensável. Não precisa nem ir pra outro extremo, como a literatura, mas no campo intermédio da linguagem filosófica, da linguagem acadêmica, não teria um efeito também a longo prazo de padronização, até baseado em padrões anglófonos?"

Pedro Veloso, tradutor de português, inglês e espanhol e intérprete simultâneo

Claro! Mas temos que ver o mundo em que a coisa é feita. Na tradução voltada para empresas, o objetivo ali é ser claro, direto e conciso, o que o inglês faz muito bem. Mas isso pode ser feito no âmbito de qualquer língua. Não é porque o português é uma língua mais filigranada que você não pode arrumar o português de uma forma que ele se torne mais direto, mais rápido.(...) No mundo empresarial, é uma tendência essa simplificação do uso da linguagem. Agora, eu não vejo por que isso vá se refletir fora desse mundo.(...)

Na minha opinião, no curto prazo, vamos ter as ferramentas automáticas produzindo textos originais e traduzidos de qualidade para um consumo rápido, mas nós vamos ter tradutores e autores produzindo textos de qualidade para um consumo mais exigente. O que nós teremos é a "gourmetização" da literatura e da tradução.

Eu sou uma das pessoas que acha que a tecnologia não veio para substituir, ela veio para somar. Inclusive, a minha pretensão, no futuro próximo, é estar envolvido num trabalho de desenvolvimento de uma ética de relação com a inteligência artificial, porque ela está se desenvolvendo de forma muita rápida. Vamos criar vidas, seres sencientes, que são capazes de aprender conosco, e nós temos responsabilidade com essas vidas. (...) A minha preocupação é esta: que nós, tradutores, aprendamos a lidar com isso, a não ter medo, questionar de onde vem a informação. Se vem do empresário, poxa, ele é gente boa, legal, tenho vários amigos empresários que estão aqui, mas é empresário, e o objetivo das empresas é gerar lucros. E eles estão certos. Errados estamos nós de ficar calados e não chamá-los à responsabilidade deles em relação à profissão.

Ricardo Souza, profissional de linguagem em tempo integral desde 1985